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Segunda-feira, 26 de Dezembro de 2011
Recortes da blogosfera e da imprensa

O ano em que o céu nos caiu nas cabeças. Felizmente

Não há nada que irrite mais os puristas da política e os idealistas de todas as estações do que recordar-lhes algumas verdades essenciais que qualquer dona de casa conhece. De resto, a simples evocação do termo “dona de casa” deixa-os fora de si. Com razão: as donas de casa fazem contas e conhecem as dificuldades do fim do mês, os fala-barato dos grandes projectos têm tendência para ignorar essas realidades comezinhas.

Ora, para compreendermos os que se passou em Portugal no último ano, temos de perceber que, ao fim de muitos anos de desvario, os portugueses voltaram a fazer contas. E começaram a fazê-lo antes do seu próprio Governo.

Há um ano, para quem já não se recorde, ainda vivíamos num mundo irreal. O primeiro-ministro de então abriu a semana antes do Natal com uma ida a Castelo Branco inaugurar uma Loja do Cidadão, prosseguiu com uma cerimónia no CCB com as IPSS e terminou sentado, pela sexta vez, ao volante do automóvel eléctrico que traria para Portugal a fábrica de baterias que afinal não veio. A ministra da Saúde passou a semana a contradizer-se sobre a dimensão do buraco orçamental do sector. O ministro das Obras Públicas inaugurou mais dois troços de PPP-alcatrão, daqueles que só acabaremos de pagar lá para 2050. Entretanto os jornais anunciavam que o fecho das contas de 2010 ameaçava ser problemático (foi ainda pior), que a Moody”s poderia cortar o rating de Portugal (cortou mesmo) e que o salário de Dezembro não chegou a tempo a todos os juízes.

Aprecie-se mais ou aprecie-se menos, já não vivemos neste desvario, apesar de muitas pessoas (como o deputado Pedro Nuno Santos) terem sinceramente saudades dessa época.

O último grande líder político que não tinha medo de assumir que, nas contas públicas, se devia ter o mesmo tipo de preocupação de uma dona de casa foi – poderia deixar de ser? – uma mulher. Margaret Thatcher, é claro. Logo na primeira campanha eleitoral em que participou, em 1949, trinta anos antes de chegar a primeira-ministra, recomendou às suas eleitoras que “não se assustassem com a linguagem complicada dos economistas e dos ministros, antes pensassem na política tal como pensam nos seus problemas domésticos”. Isso para defender que não se deve gastar para além do que se ganha – em casa ou no país.

Quando a “Dama de Ferro” chegou ao poder, no final da década de 1970, uma época de dívidas crescentes e inflação descontrolada, continuou a invocar a mítica dona de casa para lembrar que o endividamento não torna as pessoas mais livres, antes mais dependentes, e que a dependência é uma forma de degradação pessoal e social. E que é fatal para a soberania nacional.

Portugal teve a noção clara do que significava a dependência no dia em que aterraram em Lisboa os enviados da troika. Como “cobradores do fraque”, eles entraram pela nossa casa adentro, vasculharam as contas, ditaram regras, disseram o que podíamos fazer e o que tínhamos de deixar de fazer. Portugal, como acaba de confirmar aEconomist Intelligence Unit no seu índice Index of Democracy 2011, deixou nessa altura de ser “uma democracia plena” para ser apenas uma “democracia com falhas”. Porquê? Porque os portugueses deixaram de poder decidir livremente sobre aspectos essenciais da sua vida colectiva. Porque perdemos soberania.

Antes de o país, e de o Estado, se ver nesta lamentável situação, já muitos portugueses tinham começado a sentir, nas suas economias domésticas, as consequências de anos de vida desvairada. O primeiro choque chegou ainda antes da crise internacional: veio na forma da subida das taxas de juro sentida nos primeiros meses de 2008, momento a partir do qual começaram a chegar a muitos empregadores notificações para reterem parte dos ordenados de alguns trabalhadores, retenção feita a favor dos seus credores. Se olharmos para o índice de confiança dos consumidores do INE, confirmamos que é nessa altura, há mais de três anos, que os portugueses começam a desacreditar.

Para muitos portugueses aquilo que o Governo está a fazer agora – apertar o cinto, e muito – é o que eles já começaram a fazer há bastante tempo. A linguagem simples e directa de Vítor Gaspar não lhes é estranha. Pelo contrário.

Mesmo assim, em Portugal, continua a ser tabu considerar que o Estado se deve comportar com a probidade e o rigor de uma dona de casa. Isso ainda é visto como um insulto. Mas tal não impediu que uma parte da linguagem doméstica dos lares com dificuldades no fim do mês tivesse ganho foros de alforria: “Não há dinheiro.” Tal como um pai que recusa mais um pedido de um filho, o ministro das Finanças começou por repetir aos seus colegas, e estes agora repetem ao país a mais dura das verdades: o dinheiro acabou.

Foi esta a realidade com que todos (ou quase todos, há sempre uns irredutíveis proponentes de novos “investimentos”) fomos confrontados em 2011. Foi este o céu que nos caiu em cima da cabeça. E por muito duro que tal seja, ainda bem que sucedeu. Mais tempo passasse e mais peso teríamos de suportar, mais difícil seria sacudirmos a dependência.

Durante muitos anos, em Portugal, na Europa, no mundo ocidental, um optimismo esfuziante permitiu que se chegasse ao poder com base em lemas do tipo “as coisas só podem ficar melhores”, como sucedeu com Tony Blair em 1997. Não parecia mais necessário realizar escolhas dolorosas ou ter de fazer sacrifícios: o progresso chegaria naturalmente, bastavam as boas intenções da famosa “Estratégia de Lisboa” (lembram-se? Era a que faria da Europa, em 2010, a economia mais dinâmica do mundo…) e manter viva “a confiança” dos eleitorados.

Nessa época – a época de Blair e de Clinton, de Guterres e de Schroeder, de Prodi e de Jospin – o mapa político da Europa pintava-se de cor-de-rosa e havia “um amigo na Casa Branca”. A ideia thatcheriana de que se devem enfrentar os problemas em vez de os varrer para debaixo do tapete, esperando que se resolvam por si, parecia coisa de um passado longínquo.

Cruel engano, terrível desilusão. Dez anos depois o mapa político da Europa não podia ser mais diferente. Neste momento 97 por cento dos europeus são governados por executivos de centro-direita e a crise não parece estar a abrir caminho a um eventual regresso do centro-esquerda. Pior: sem dinheiro, sem capacidade de endividamento ilimitada, até os governos de centro-esquerda estão obrigados a políticas que antes execravam. Para socialistas e sociais-democratas, terem colocado os seus países e a Europa na mão dos credores correspondeu a um suicídio político de consequências ainda difíceis de prever. Sobretudo pelos que ainda pensam que pagar as dívidas é uma ideia de criança… 

 

Jose Manuel Fernandes, Público e Blasfémias, 23 Dezembro 2011
 



publicado por Paulo Sousa às 23:00
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