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Domingo, 13 de Maio de 2018
Senhor Marquês

Senhor Marquês

11 Maio, 2018

Ah, foi o homem certo no momento certo.
Ah, era o único primeiro-ministro com uma ideia, um plano, um projeto para o país.
Ah, se não fosse ele, não teríamos crescido economicamente.

Ah… Ah… Ah? Ah?? Corrupção? Branqueamento de capitais? Milhões na Suíça? Dinheiro em troca de benefícios a empresas? Passava o dinheiro pela conta de amigos até chegar a si, já bem lavado?

A sério? Diz que sim, que é sério. Bem sério.

O despacho final de acusação da Operação Marquês tem mais de 4 mil páginas. O Ministério Público vasculhou 500 contas bancárias, passou a pente fino milhares de documentos, em Portugal e no estrangeiro, inquiriu 200 testemunhas e mandou gravar não sei quantas horas de escutas telefónicas.

“Senhor Marquês… e o nosso fim do mês?” Sempre que ouço Operação Marquês é disto que me lembro: da música de Sérgio Godinho. “Passe pra cá a carteira/ Da sua algibeira/ Carteira em couro/ Relógio de ouro/ Não lhe faz falta/ E faz-nos jeito à malta”.

Senhor Marquês é apropriado. Sócrates tem um ar nobre, mais nobre do que qualquer político socialista. Fatos impecáveis, postura cuidada, elegante, bem falante.

Bem diferente dos anteriores: diferente de Guterres – bom orador, mas fraca figura (e nem falo do bigode mexicano) –, diferente de Sampaio – retórica incompreensível, pálido e frágil –, Constâncio – à época, nem bem falante. No Palácio de Cristal no Porto ia tendo um treco antes de subir ao palco e enfrentar a multidão.

Já para não falar nos compagnons de route. Sócrates encarnava tudo naquele 2005. O sorriso, os olhos claros, os fatos caros, o verbo fácil.

Era incisivo, feérico, feroz. Combativo e bem parecido. O pacote era perfeito.

Tanto que a maioria absoluta lhe caiu no colo. Ser bem parecido e ter os “ais” das senhoras ajuda imenso a ganhar eleições.

Lembro-me que em 2005, Sócrates teve de passar a beijar criancinhas e velhinhas nas arruadas. O aceno de longe não chegava. Precisava de ser tão simpático como o senhor do cartaz que tinha olhos azuis brilhantes e um sorriso afável. E foi. Em Reguengos de Monsaraz, na última semana de campanha – já tinham saído as primeiras notícias do Freeport no Independente –, teria pegado em anões ao colo, se tivesse encontrado um pelo caminho. Mas de propósito.

Na primeira maioria absoluta, no hotel Altis, a frase lapidar de Sócrates no discurso de vitória ficou-me cravada na memória. É uma frase simples, mas que encerra tudo. “Camaradas, conseguimos!”. Não consigo encontrar o meu texto nessa noite, mas o título era este: porque nele tudo está dito.

“Camaradas, conseguimos tirar o PSD do poder”. “Camaradas, finalmente uma maioria absoluta”. “Camaradas… chegamos ao cofre”. Foi a última que eu realmente ouvi quando Sócrates de sorriso de orelha a orelha e mãos levantadas, encadeava a plateia de socialistas, todos eles sequiosos de mudar de vida, à espera da oportunidade que Durão Barroso lhes lhe tinha tirado em 2001.

“Camaradas, conseguimos!!!!” E Sócrates conseguiu. Praticamente sozinho. Ele e a máquina que o acompanhava sempre a funcionar como um relógio: rodeou-se dos melhores. E dali seguiu caminho, a rasgar.

Os “soluços” eram os casos que iam surgindo. Alguém já se esqueceu que Sócrates sobreviveu à suspeição há mais de uma década? Com a surpresa da detenção, muitos se esqueceram dessas denúncias feitas por jornalistas atentos, dedicados, profissionais e por direções de jornais que não temeram o bullyingjurídico que foram sofrendo durante anos.

Cova da Beira, licenciatura, Freeport, o caso PT/TVI, as tais famosas campanhas negras que Sócrates acusava de serem protagonizadas pela estação de Queluz de Baixo e pelo Público.

“Ah, mas fez obra e impulsionou o país para a “frente” e investiu” e… levou o país aos braços do FMI.

Não vamos discutir política económica ou Formação Brutal de Capital Fixo (vulgo investimento) ou sequer opções do plano. Aliás, não vamos discutir nada porque não estou para isso.

Mas a sério que tem esse passado todo? A sério? É pá, não sabia.

Ceguinhos! Ou parvos, ou mentirosos, ou crédulos, ou imbecis, ou farinha do mesmo saco.

O que eu penso sobre o senhor, o que eu já pensava sobre o senhor, o que eu sempre pensei sobre o senhor, não é revelante para o caso. Mas a verdade é que tive acesso à “peça” mais de perto. E isso é um bom medidor de caráter: o frente-a-frente.

E mesmo que Sócrates seja mitómano, como claramente parece, e acredite nas suas próprias mentiras, é impossível conviver de perto, de muito perto, e não perceber o que ali se passava. A não ser que a sedução nos deixe cegos. Como deixou muitos jornalistas. Muitos, eles e elas, apaixonaram-se pelo magnetismo do animal feroz. Nada contra. Mas um jornalista tem que se imune à paixão. Imagino que não seja fácil – nunca me apaixonei por um político ou um entrevistado –, mas de um jornalista espera-se um bocadinho mais.

Quem acreditou que Sócrates tinha fortuna de família suficiente para aquele tipo de vida? Quem acreditou que era acaso o grupo Lena vencer constantemente concursos públicos, quer fosse para casas pré-fabricadas na Venezuela, quer fosse para a Parque Escolar? Essa conversa já se tinha nos corredores há muitos anos, antes de qualquer processo. Não me lixem: poucos foram os ingénuos que se deixaram magnetizar pelo brilho do grande chefe. Poucos.

Sócrates é um homem com carisma. Facilmente impressiona, facilmente seduz. Impressionou jornalistas, políticos. Impressionou-se com banqueiros, gestores e empresários. Serviu-se de uns. Dele serviram-se uns quantos.

Ambicioso, rapidamente viu a sua oportunidade no Partido Socialista. Em apenas dois anos, venceu no PS e venceu o PS – com uma bancada parlamentar renitente a apoiá-lo. Com dois anos de treino televisivo, rapidamente conseguiu virar os debates quinzenais. O Governo de Santana e o poder de Sampaio facilitaram tudo. Em muito pouco tempo, era primeiro-ministro.

O tirocínio tinha sido curto. Foi deputado, ministro e secretário de Estado do Ambiente. Já na pasta, deixou rasto. Aliás, desde muito cedo que, por isto ou por aquilo, Sócrates deixava rasto. Mas pareciam migalhas: os pardais comiam os restos rapidamente. E rapidamente todos esqueciam.

Para isso muito ajudou a comunicação social que agora rasga as vestes. Quem não se recorda de entrevistas fofinhas de páginas e páginas, de peças sobre o seu mau feitio – com um tom carinhoso, era o zangão dos anões da Branca de Neve, lembram-se? –, de telefonemas ao Zapatero, de longas conversas amenas sobre o crescimento da economia.

Também se lembram das derrapagens orçamentais, do défice a dois dígitos, do aumento salarial aos funcionários públicos, a poucos meses das eleições de 2009 – e a pouco tempo do resgate financeiro.

E também se aperceberam, presumo, dos amigos que teve na justiça: Pinto Monteiro e Noronha de Nascimento seguravam muitas pontas. Cândida da Almeida conduzia tudo com zelo.

Sócrates dominava a comunicação social – quanto mais não fosse pelos constantes telefonemas do gabinete, do próprio, da insistência, da teia que se urdia com a facilidade, da sedução, da agilidade com quem transformava tudo, como encobria e descobria e brincava com as marionetas que se deixam manietar –, mas não como gostaria: queria mais e em curso estava um plano maquiavélico de xadrez, onde o estratega movia os seus peões, soldados e generais prussianos, daqueles que não se amotinam, como prometia Afonso Camões, na altura diretor da Lusa e que passaria para diretor do Jornal de Notícias: tudo no âmbito desse golpe palaciano que o antigo PM queria fazer aos media em Portugal. A todos, numa megalomania típica de Sócrates.

Começava na Global (à época, a Controlinveste) – com Sócrates a determinar diretores para o JN e DN e com Proença de Carvalho no conselho de administração. Passava ainda pelo controlo da TSF (que faz parte do grupo), da TVI também, em join venture com a PT. A RTP já estava. E já agora que o Público fosse “dominável”. Essa seria a tarefa mais espinhosa: o jornal que Belmiro sustentava, e fazia questão que se mantivesse independente, não era “comprável”.

Aliás, foi dali (e da Focus), daquela redação que saíram os primeiros indícios do que Sócrates era, é e sempre foi o mesmo que o Ministério Público agora acusa. José António Cerejo foi processado – assim como o Público e a sua direção – de todas as vezes que descobriu um “podre” na vida de Sócrates. E de todas as vezes ganhou.

Essa perseguição que S. Bento fazia à liberdade de imprensa nunca deixou ninguém revoltado. Nem sequer os jornalistas. Poucos se indignaram. Só os que também faziam investigação sobre as diferentes patranhas de Sócrates.

Os outros estavam maravilhados com os Magalhães, o Chávez, as viagens a todo o lado e mais algum, com o Sócrates a falar espanhol com o Zapatero, com o Sócrates a falar com a Merkel, que o tratava de forma tão afável.

Afinal, quando é que o país teve um primeiro-ministro com ar distinto, como este? Com fatos feitos à medida… com frases lapidares, com resposta pronta para tudo? Quando é que o país teve um primeiro-ministro que não mostrava um pingo de receio, que nunca recuava, que atirava a matar?

Era o cartão de visita de um país em franca recuperação. De um país que tinha deixado de pensar em coisas comezinhas como o défice.

Alguma vez tinha havido um primeiro-ministro tão magnetizante? Não posso falar de Sá Carneiro, não sou desse tempo. Posso até apostar que Sá Carneiro mostrava coragem e virtude. Mas nenhum alguma vez se portou com a altivez de Sócrates. Com a distinção quase “real e nobre” de Sócrates.

“Venha por aqui ver isto/ Senhor Ministro/ Que estes bandidos/ Uns mal nascidos/ Ainda sem dentes/ E já delinquentes”.

Os que durante anos desconfiaram da personagem eram uns ingratos. Ingratos! Porque Sócrates fazia muito pelo país. Infames porque só o queriam atingir com uma reles e “travestida” (lembram-se?) campanha negra. Desprezíveis porque queriam um país pequenino e pobrezinho e não o Portugal do futuro, cheio de luzes e brilhos. Em que banqueiros e gestores de topo eram o milagre nacional. Os que tudo conseguiam. Os empresários mais “isto” da Europa e os mais “aquilo” do mundo. Os “Zeinais”, os “Mexias”, os “Granadeiros” desta vida.

Sócrates tinha aquele ar de quem era incapaz de falhar. Incapaz de errar. Incapaz de cair.

Mas só se ofuscou com brilhos e luzes quem quis. Porque tudo o resto, já estava pelas notícias e pelas reportagens. Até em televisão, no canal com mais audiência. Não há desculpa.

Mas o “senhor Marquês” gozou do facto de muitos jornalistas já não lerem jornais. E de se impressionarem mais em almoços e jantares faustosos em países distantes do que com a verdade seriamente investigada por quem se decidiu a procurar os factos, em vez de se alimentar da forma.

— Judite França

 

In Blasfémias



publicado por Paulo Sousa às 22:00
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Obrigado Laura,Apenas aqui poderia ter chegado pel...
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