"Saudades do fássismo
Comecei* por fazer umas coisas num escritório: usava óculos, lia muito, parecia esperto, precisava de trabalhar - a cunha funcionou. O patrão, um sacana paternalista que pagava mal, achava-me graça e deixou-me fazer uns estudos - cheguei a guarda-livros.
A contabilidade era uma coisa simples, a estabilidade legislativa muita, os fiscais uns ferrabrases que se compravam, em caso de necessidade, por um preço módico, os impostos moderados - a vida de guarda-livros era, para quem tivesse alma de manga-de-alpaca, uma boa vida, se a empresa fosse sólida - e era.
Depois veio a Revolução, que acolhi com alegria: estava farto dos bonzos engravatados e barrigudos do regime, da atmosfera opressiva, do palavreado gasto e oco do Estado Novo, dos jornais chatos, da corrupçãozinha modesta e institucionalizada, dos livros, pela maior parte merdeiros, que se liam às escondidas porque eram do contra e estavam proibidos, do medo de falar alto e bom som no café, da falta dos filmes e revistas com gajas nuas... - ide pentear monos pró Brasil, seu bando de fássistas.
Depois, a malta que andava até ali pelo exílio, as prisões e a clandestinidade, tomou conta do proscénio - e foi o que se viu.
Esse tempo passou. E ficou assente, e continua, que cada qual diz o que quer quando quer - este Vosso criado usa essa liberdade com liberalidade, tranquilo na certeza de que, quem não gostar - põe na beirinha do prato.
Pois sim. Mas sucede que os operários, naquele tempo, tinham emprego e uma motorizada, fumavam e bebiam; e a classe média começou nos anos sessenta a ter o seu carrito, a sua televisão, o seu frigorífico, o seu módico de assistência - o País crescia como nunca havia crescido antes nem voltou a crescer depois.
Também não se ignora o que veio a seguir: a motorizada foi substituída pelo carro novo, o utilitário pela gama média, a televisão pelo plasma, ou lá o que é, a quarta-classe pelo 19º ano, o 19º ano pelo curso superior e este pelo mestrado - os licenciados já não se limitam a dizer asneiras, fazem-no com mestria. E eu fui promovido a técnico de contas, por via semântica.
Uma parte deste progresso foi tecnológica - é tudo mais eficiente e mais barato; e outra foi do crédito, com o qual sucessivos governos compraram votos.
Estamos na fase de pagar - se conseguirmos - o calote.
Mas os filhos dos antigos operários não têm emprego, e por isso emigram. E esta emigração não é a mesma do antigamente, porque dantes se despovoavam as aldeias de cavadores miseráveis; e agora se despovoam as cidades de jovens com formação que, ainda que atamancada, está a anos-luz da dos Pais.
Em paralelo, sub-repticiamente, o Estado Novo, morto de morte matada, e o breve fogacho comunista, incorporado no regime como protestatário de serviço, foram sendo substituídos pelo Estado igualitário politicamente correcto. E o antigo operário, e já agora os filhos, e já agora os outros, já não fuma, porque o nanny state lhe tornou, via preço, o tabaco inacessível; não vai ao tasco porque a ASAE lhe transformou o estabelecimento numa loja sueca com consultor para saber de que cor devem ser exactamente os cabos das facas; não usa a motorizada porque tem o automóvel, que aliás não usa porque não tem dinheiro para pagar o combustível e as portagens; vive no terror de perder o emprego, porque, se o perder, perde também a casa, que lhe afiançaram ser dele; e pertence finalmente à classe média, porque esta desceu ao nível dele.
Têm todos, operários e colarinhos brancos, agora irmanados, conta no banco e ligação à internet. As contas servem para os bancos os induzirem a comprar a crédito o lixo de que não precisam e para os tornar objecto de todo o tipo de exacções, usuras e abusos. E, em conjunto com a administração electrónica, a via verde, os cartões de crédito, o desaparecimento do secretismo bancário, a legislação contra o enriquecimento ilícito (e, crescentemente, o enriquecimento, ponto) e o reforço demencial dos poderes da Administração Pública, em particular da Fiscal, para que o Estado saiba exactamente quem ganha o quê, como, onde, onde vai, o que consome, e a que horas.
Em troca, dizem-nos para levarmos guarda-chuva se chover, nos agasalharmos se estiver frio, informam-nos da cor do alerta em que está a nossa região e qualquer director-geral com risca ao meio e aspecto ridículo se julga autorizado a verberar-nos os vícios, tal como uma ministra com alma de enfermeira num lar de terceira idade não se acha grotesca a ensinar-nos a lavar as mãos.
Agora até o dinheirinho em papel vai ser ilegalizado: uma empresa gastar sem o Estado saber o quê, nem com quem? Era o que faltava - empresas são quadrilhas de ladrões, salvo prova em contrário.
E se o Estado vai dentro das empresas, que são pessoas colectivas, dizer o que os donos podem e não fazer, por que carga de água não há-de fazer o mesmo com as pessoas singulares? Dêem-lhes tempo - o software precisa de ser rodado.
É por isso que, à força de me tirarem liberdades, uso aquela que ainda está relativamente intocada para dizer que já estive mais longe de ter - o que diz o título.
* Não comecei nada, dá-me jeito dizer assim."
José Meireles Graça, Forte Apache
Estava para fazer um post sobre a reacção do PSD nacional aos resultados das eleições da Madeira, onde diria que, apesar do que aqui já tinha escrito, o partido do governo se soube distanciar condignamente dos resultados e mostrou ao país como está comprometido com a resolução dos graves problemas financeiros deixados pelos socialistas, mas quando soube disto tive de mudar de assunto.
O asseio que pouco a pouco e silenciosamente invade as nossas vidas deu mais um passo. A UE legislou no sentido de que as crianças com menos de oito anos não possam encher balões de ar. A proibição alarga-se aos assobios usados nas festas conhecidos entre nós como línguas-de-sogra. O motivo prende-se com a alegada perigosidade destes engenhos que fazem parte do universo infantil há muitas gerações. Mais uma vez o legislador regula (mal) ao pressupor a incapacidade dos cidadões em tomarem decisões com base no bom senso, e assim pretende privar os nossos filhos de experiências pelas quais nós passamos e (espanto!!!) sobrevivemos.
Mais uma vez se repete a velha regra, alguém de direita que não goste de balões não brinca com eles. Se for de esquerda, não brinca e proibe todos os demais de o fazer.
O impulso controlador de uma certa esquerda não arrefeceu com a crise que se vive.
Depois da verdadeira caça às bruxas que, pouco a pouco, se tem vindo a tecer contra os fumadores, os pretensos donos da moral dos outros fazem uma nova investida, desta vez contra a comida chamada de fast-food.
O bastonário da ordem dos médicos acha que é reeducando fiscalmente o público ignorante e labrego que se resolve os problemas da saúde. Eu a ele preferia alargar o acesso à formação de médicos e assim possibilitar que milhares de portugueses pudessem ter acesso a um médico de família, o que não acontece em resultado da pressão que o lobby que representa exerce dentro do estado.
Fazendo um esforço por observar o fenómeno a uma distância maior podemos também ver uma das diferenças na acção da esquerda e da direita. Se um 'perigoso' liberal de direita não gostar de fast-food simplesmente escolhe uma alternativa. Já um indivíduo de esquerda, solidário e preocupado com o próximo, além de não frequentar as catedrais das calorias acha que os demais devem ser impedidos de o fazer.
A liberdade é bonita mas é nas cantigas de Abril, de resto só atrapalha.
Há dias recebi um email que comparava as convicções de direita com as de esquerda, no que toca à liberdade individual. Alguém de direita que não goste de fumar não fuma, enquanto que alguém de esquerda com gosto idêntico, além de não fumar pretende proibir que os outros fumem.
Em Espanha o governo socialista a braços com uma grave crise económica e social, entendeu ser importante que neste momento se proibisse a possibilidade de fumar em casa se aí houver uma empregada a trabalhar. Olhando para a notícia do ABC a lei aplica-se a empregadas, o que não deixa de ser uma curiosa presunção sexista, mas o que sobra de facto é a violação das liberdades individuais dentro de último reduto da esfera privada, a habitação.
Esta medida enquadra-se num largo conjunto de muitas outras que visam formatar o indivíduo de acordo com os standards do que é considerado correcto. Eu chamo-lhe o asseio.
Nunca consegui gostar do acto de fumar, mas perante este frenesim, assumo o compromisso de que VOU COMEÇAR A FUMAR. Talvez me dedique ao cachimbo, para já como acto simbólico, mas com sorte talvez fique viciado.
Leitura diária
Debaixo de olho
O Futuro e os seus inimigos
de Daniel Innerarity
Um livro que aposta numa política do optimismo e da esperança numa ocasião em que diminui a confiança no futuro. Boa parte dos nossos mal-estares e da nossa pouca racionalidade colectiva provém de que as sociedades democráticas não mantêm boas relações com o futuro. Em primeiro lugar, porque todo o sistema político, e a cultura em geral, estão virados apenas para o presente imediato e porque o nosso relacionamento com o futuro colectivo não é de esperança e projecto mas de precaução e improvisação. Este livro procura contribuir para uma nova teoria do tempo social na perspectiva das relações que a sociedade mantém com o seu futuro: de como este é antevisto, decidido e configurado. Para que a acção não seja reacção insignificante e o projecto se não converta em idealismo utópico, é necessária uma política que faça do futuro a sua tarefa fundamental
Teorema
Cachimbos: Marcas, Fabricantes e Artesãos
de José Manuel Lopes
O mais completo livro sobre cachimbos, da autoria do jornalista José Manuel Lopes, presidente do Cachimbo Clube de Portugal. Profusamente ilustrada, esta obra a que poderíamos chamar enciclopédica, dá-nos ainda em anexo uma completíssima lista de clubes e associações do mundo inteiro e dos seus sites.
Quimera